Exclusivo: universidades demitiram apenas 6% dos professores acusados de assédio sexual nos últimos 10 anos

Levantamento inédito da CNN revela que estudantes registraram mais de 200 denúncias de assédio sexual contra professores de instituições federais; na maioria dos casos, docentes não foram investigados ou punidos

REUTERS/Andreas Gebert

Roberta* era aluna da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em 2014, quando teria sido assediada por um de seus professores.

Segundo o relato da estudante, o docente tentou beijá-la após uma carona. Roberta* negou e disse que gostaria que a relação entre os dois se mantivesse apenas no âmbito professor-aluna.

A estudante disse que o docente recusou o “não”, a beijou à força e apalpou seus seios. O caso foi levado à direção da universidade quase um ano depois, em março de 2015.

Roberta* explicou à comissão responsável por analisar o caso que, “pelo fato de ser aluna, acreditava não ter credibilidade para fazer a denúncia contra o professor”.

Ela só foi convencida a formalizar o processo por um outro docente da faculdade.

Esses relatos estão em uma investigação da universidade à qual a reportagem teve acesso.

O caso de Roberta* é um dos mais de 270 registrados em universidades federais de todo o país e representa uma minoria: um caso em que o professor acusado foi punido pela instituição.

A CNN realizou um levantamento exclusivo e inédito sobre o quadro de denúncias de assédio sexual contra professores nas universidades brasileiras.

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e indicam que apenas 6% dos processos resultaram em demissões dos docentes acusados desse tipo de conduta.

O número de denúncias provavelmente é subdimensionado, segundo especialistas ouvidos pela CNN, já que muitos estudantes, sobretudo mulheres, evitam apresentar as denúncias formalmente.

O relato de Roberta* corrobora com esse receio: ela acreditava, à época, que não teria credibilidade suficiente para apresentar a denúncia.

No documento, Maria*, outra estudante da UFRR, relatou um episódio parecido. Segundo ela, também em uma carona, o mesmo docente pegou um caminho diferente do usual.

“O professor parou o carro em um local meio escuro e tentou beijá-la. A depoente [a estudante] não permitiu o beijo e disse que não queria beijá-lo. O professor insistiu, alegando que eram solteiros e não tinha problema nenhum. Depois de alguma insistência, a depoente disse que se o professor não parasse de insistir, desceria do carro. O professor disse que não precisava que a depoente descesse e a levou para a residência universitária. Ao chegar na residência universitária, o professor novamente tentou beijar a depoente e ela tornou a rejeitar”, mostra o depoimento de Maria* à universidade.

Diversas outras alunas relataram práticas incômodas do professor. Uma delas afirmou que o docente “dizia que conquistaria a mulher que quisesse, que tinha bom papo e as mulheres que se envolviam com ele queriam se casar”.

O docente foi demitido ao fim do processo. Um dos elementos que ajudaram na punição foi uma gravação de Roberta* em que se ouve o professor dizendo que “um beijinho não mata ninguém”.

No áudio, ele diz não ver nenhum problema no relacionamento de um professor com uma aluna. A estudante deixa claro na gravação que quer ter outro tipo de relação.

Para a advogada Mayra Cotta, especializada em gênero, formada pela Universidade de Brasília e doutoranda em Política na New School for Social Research, em Nova York, as instituições precisam desenvolver mecanismos para analisar casos de assédio.

Nesses processos, ela diz, nem sempre serão encontradas provas materiais tão concretas como em denúncias de corrupção.

“A cabeça do investigador, que está acostumado com casos de fraude e corrupção, vai olhar para prova cabal material de quando o assédio aconteceu. Mas precisa virar essa chave para entender que nem sempre vai ser um ato só, vai ser um processo e que em casos de assédio a gente vai ter o relato da vítima e a gente vai ter elementos probatórios corroborando pedaços desse relato”, afirmou à CNN.

“A maioria dos casos a gente não vai ter um vídeo do momento em que o professor tentou agarrar a aluna à força, ou uma testemunha que viu isso, mas a gente vai ter, por exemplo, testemunhas que viram ela saindo da sala do professor com o rosto vermelho, chorando, uma série de trocas de mensagens contextualizadas que vão demonstrar a progressão dessa conduta inapropriada”, completou.

A punição da UFRR ao docente, cujo nome foi omitido nesta reportagem, é uma raridade no âmbito das universidades federais brasileiras.

Na Universidade Federal de Cariri (UFCA), em Juazeiro do Norte (CE), o caso da estudante Amanda* confirmou a regra. A aluna relatou ter sido assediada sexualmente quando um professor teria lhe dado um tapa nos glúteos, em 2017.

Amanda* ainda disse que ouviu do professor que teria que “tomar cuidado com as roupas para não parecer somente uma bunda”.

O mesmo professor foi acusado por outras mulheres da UFCA.

Cristina* relatou que ele “gosta de brincar pegando no bumbum das mulheres que estão ao redor dele”.

Outra aluna, Elis* disse que teve contato com o docente por volta de 2013. Posteriormente, relatou que o professor “perguntou porque ela teria tantos pelos no corpo e que ele gostaria de saber se ela era homem ou mulher, externando que gostaria que ela tirasse a roupa para o acusado [o professor] constatar”.

Fernanda* também teve contato com o professor e relatou condutas que considerou inapropriadas. Ela teria de enviar um conteúdo em vídeo ao docente por ter faltado a uma avaliação da disciplina.

Segundo a estudante, o professor “falou que ela não enviasse esse vídeo seminua, o que ela encarou como assédio”.

Fernanda* ainda disse que o docente “a perguntou quando ela entraria com o processo de assédio contra ele” e que ele já a teria chamado de “morena bonita” em um “tom invasivo”.

Os relatos constam em relatório obtido pela CNN sobre assédio feito pela Universidade Federal de Cariri, que preservou a identidade do docente.

As acusações apresentadas por diversas alunas se somaram a depoimentos de outras testemunhas que, em contrapartida, disseram que o professor era um exemplo de profissional, uma pessoa “alegre”, que “gosta de brincar” e que ele dava “tratamento igual a todos os alunos”.

O acusado negou no processo que tenha passado a mão no corpo de alunas e chegou a alegar que uma das denunciantes tinha “algum tipo de desequilíbrio emocional, pois depois que ela o acusou dessa conduta, pediu ao depoente [professor] um abraço em público no pátio da universidade”, ato que a própria aluna confirma ter existido.

O professor afirmou que “a partir do episódio da orientação a uma aluna que estava usando roupas curtas em Sobral percebeu que outras alunas podem ter interpretado de outra forma essa orientação”, que, segundo ele, “era didática e não sexual”.

Ao fim do processo, diante da ausência de outras provas além do testemunho das vítimas, a Universidade Federal de Cariri decidiu arquivar o processo, em maio de 2019.

Cenário

Segundo levantamento da CNN, as universidades federais registraram, nos últimos 10 anos, 279 denúncias de assédio sexual de professores contra estudantes.

Cerca de 20% delas resultaram em punições aos docentes – e menos ainda em demissões dos acusados.

Dos 279 casos de denúncia, 17 terminaram na demissão dos professores acusados de terem assediado sexualmente estudantes das universidades federais, enquanto 39 resultaram em punições mais brandas (como suspensão, afastamento, advertência e remanejamento de setor).

Mais de 100 casos foram arquivados pelas universidades nesse período.

A CNN questionou mais de 64 universidades federais de todas as regiões do país por meio da plataforma FalaBR, que reúne questionários com base na Lei de Acesso à Informação.

Nove delas não responderam – seja negando o pedido da reportagem ou oferecendo informações diferentes das requisitadas.

A pedido da reportagem, algumas universidades forneceram seus relatórios finais, enquanto outras apresentaram apenas parte dos dados, alegando não poder fornecer mais informações por causa da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Parte das universidades se recusou a apresentar quaisquer informações sobre casos de assédio sexual em suas unidades, o que impede a transparência sobre suas ações para coibir tais práticas de assédio.

Os números evidenciam um quadro grande de denúncias de estudantes contra docentes das universidades públicas. Órgãos das próprias instituições reconhecem que esse número deve ser ainda maior, já que muitas vítimas acabam não formalizando as acusações.

“Sobre a providência adotada em cada caso, depende da autonomia da mulher em situação de violência. Somente a vítima pode decidir se quer denunciar e qual é a solução que ela deseja para o caso, em razão de processos de revitimização provocados pela violência estrutural e institucional de gênero. Os casos de assédio sexual que culminaram em denúncias formais na UFOP são minoria”, afirmou a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por exemplo, em resposta formal ao questionamento feito pela CNN.

Subnotificações de casos de assédio

Uma pesquisa do Instituto Avon, realizada em 2015 com mais de 1.800 universitários de graduação e pós-graduação de todo o país, mostrou que 73% dos entrevistados conhecem casos de pessoas que sofreram com assédio sexual no ambiente universitário.

O estudo indica ainda que 56% das mulheres entrevistadas disseram ter sofrido assédio.

Uma das declarações trazidas na pesquisa indica justamente a problemática do assédio sexual cometido por professores.

“Não são só os alunos. Um professor me trazia presentinhos toda aula e começou a mandar mensagem pelo celular. No dia da prova, ele sentou do meu lado e me deu a prova mais fácil, fez de tudo pra eu entender que aquilo era um favor. Tipo… Que ele ia cobrar”, afirmou a estudante, que não teve a identidade revelada pelo estudo.

Um projeto realizado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e divulgado neste ano também indica o alto número de casos não notificados para as autoridades.

Segundo a pesquisa “O perfil do cientista brasileiro em início e meio de carreira”, 47% das mulheres e 12% dos homens disseram já ter sofrido assédio sexual ao longo da carreira.

O levantamento entrou em contato com mais de 4.000 pesquisadores de programas de pós-graduação de todo o país e também aqueles que estão fora do Brasil.

Para a advogada Mayra Cotta, nos casos de assédio de um professor contra um aluno – especialmente contra alunas -, a subnotificação tende a ser ainda maior por dois fatores: a relação hierárquica entre a vítima e o assediador e a vergonha que esse tipo de ato provoca.

“Não tenho a menor dúvida [de que essa relação aumenta a subnotificação]. Não só pelo motivo óbvio, a relação hierárquica. Você não quer reportar alguém que vai ser responsável pela sua nota, que pode lá na frente prejudicar a sua carreira, tem esse medo de bater de frente com uma figura de autoridade, e você está começando a sua vida profissional na universidade”, afirmou.

“Esse professor, de quem a gente busca validação, reconhecimento, às vezes é um professor muito respeitado, todo mundo gosta, cuja opinião é muito importante, os alunos que são bem avaliados são considerados excelentes alunos”.

“E vem esse professor comete assédio sexual contra você e invalida completamente essa posição dele de te legitimar e de te validar enquanto estudante Parece que se você teve uma boa nota na matéria, por exemplo, é porque esse professor teve um interesse secundário em você. Isso é muito cruel, mexe muito na nossa autoestima”, relatou.

Falta de rede de apoio

A mesma percepção é compartilhada pela coordenadora da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, Juliana Arruda.

Ela disse à CNN que, além da falta de rede de apoio e da demora para perceber que foi vítima de assédio, até mesmo a sensação de impunidade colabora para que as denúncias não sejam formalizadas.

“[Um dos pontos] é uma percepção que acho que está na sociedade, e a universidade não está imune a isso, é a sensação de impunidade, dadas as várias situações no âmbito universitário, mas também na sociedade, de situações de violência de assédio moral e sexual, que mesmo com provas e testemunhas, quem denuncia tem que provar e reprovar novamente o que aconteceu com ela”.

“Então a pessoa precisa se munir de uma força muito grande, e de um desejo para que aquilo não se repita”, afirmou.

“A pressão para que a denúncia seja retirada é muito grande. O tempo todo essa pessoa vai ser julgada, vai ser levada a repetir e repetir o que houve, o que aconteceu”, completou.

No caso de denúncias de estudantes contra professores, a coordenadora da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas acredita que os incentivos para não haver denúncia são ainda maiores.

Para ela, há uma “relação de poder” e também uma “solidariedade” entre professores que causam um receio ainda maior por parte dos alunos.

“Então, certamente nessa relação de poder entre um professor e um estudante, além do medo de ser reprovado, perseguido, de ter influência nas notas, não conseguir continuar na disciplina específica daquele professor que cometeu o ato, para além disso ainda temos a discussão da solidariedade dos professores, daquele grupo que se acolhe e que de repente se eu denuncio um professor meu, um outro professor pode também me perseguir”, argumentou.

Arruda é doutora em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e atualmente é pró-reitora de Assuntos Estudantis na mesma universidade.

A falta de mulheres em postos de chefia, como o dela, também é apontado por ela como um fator para que estudantes evitem denunciar

“Algumas universidades têm reitoras, pró-reitoras, chefias, mas ainda não é natural. Infelizmente ainda não é natural. Então você vai estar diante de alguém que vai decidir sobre a sua vida e esse alguém é um homem que pode ser solidário àquele outro homem e você passar por todas essas questões”, completou.

A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas iniciou, em junho deste ano, a Campanha Assédio Zero, de combate e conscientização do assédio no ambiente universitário.

O grupo tem realizado lives e planeja organizar eventos nas universidades para levar o debate de uma forma mais presente para a realidade dos alunos e alunas.