Rússia não reconhece a Corte; organismo internacional sediado em Haia também emitiu mandado de prisão para autoridade russa no centro do suposto esquema para deportar à força milhares de crianças ucranianas para a Rússia
O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão para o presidente russo Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova.
Lvova-Belova é a autoridade russa no centro do suposto esquema para deportar à força milhares de crianças ucranianas para a Rússia.
O organismo internacional sediado na cidade de Haia, na Holanda, anunciou os mandados em um comunicado à imprensa nesta sexta-feira (17).
No comunicado, o TPI pontua que Putin e Lvova-Belova são “supostamente responsáveis” pelos crimes de guerra, de deportação ilegal de população (crianças) e transferência ilegal de população (crianças) da Ucrânia para a Rússia.
O TPI ainda afirmou que, embora os mandados sejam sigilosos para proteger as vítimas e salvaguardar a investigação, o fato da guerra ainda estar em curso e “que a divulgação pública dos mandados pode contribuir para prevenir a continuação da prática de crimes”, foi decidida a divulgação da existência dos mandados.
Ainda é improvável que um julgamento em Haia vá adiante. A Rússia não é membro do TPI e o tribunal não realiza julgamentos à revelia, portanto, qualquer funcionário russo acusado teria que ser entregue por Moscou ou preso fora da Rússia.
De acordo com os EUA e vários governos europeus, o regime de Putin realizou um esquema para deportar à força milhares de crianças ucranianas para a Rússia, muitas vezes para uma rede de dezenas de campos, onde os menores passam por reeducação política.
“Os esforços de Lvova-Belova incluem especificamente a adoção forçada de crianças ucranianas em famílias russas, a chamada ‘educação patriótica’ de crianças ucranianas, mudanças legislativas para acelerar o fornecimento de cidadania da Federação Russa a crianças ucranianas e a remoção deliberada de crianças ucranianas pelas forças da Rússia”, disse o Tesouro dos EUA em setembro.
O título governamental de Lvova-Belova é comissária para os direitos da criança no Gabinete do Presidente Russo.
A Rússia caracterizou os relatos de realocação forçada como “absurdos” e disse que faz o “melhor” para manter os menores com suas famílias.
O chefe de gabinete do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, Andry Yermak, disse que o mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para o presidente russo, Vladimir Putin, é “apenas o começo”.
“Este é apenas o começo”, Yermak postou no Telegram nesta sexta-feira.
Rússia não reconhece TPI e não deve cumprir decisões, explica professor
“Apesar de a Rússia ter assinado tratado que criou o TPI, ela não ratificou o acordo, que seria o segundo ato de validade. Além disso, revogou a primeira assinatura em 2015″, disse.
Por esse motivo, a “Rússia não vai cumprir a entrega de qualquer cidadão seu”, acrescentou.
“Se a Rússia se negar a entregar indivíduos, a ONU pode aplicar mais sanções, por ter criminosos de guerra no seu território”, ponderou.
O que é o Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Haia)?
O Tribunal de Haia é, na verdade, chamado Tribunal Penal Internacional (TPI).
O (TPI) investiga e, quando justificado, julga indivíduos acusados dos crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão.
A Corte funciona desde julho de 2002 de maneira independente e suas decisões podem ser cumpridas em 123 países.
Formado por 18 juízes de diferentes países, o órgão é uma das principais entidades ligadas ao Direito Internacional, sendo responsável pelo julgamento de quatro tipos específicos de crimes que violam os direitos humanos: contra a humanidade, de guerra, de genocídio e de agressão.
Desde 2018, o Tribunal de Haia é presidido pelo juiz nigeriano Chile Eboe-Osuji. Atualmente, a Corte não conta com membros brasileiros, e a única representante da América do Sul é a peruana Luz del Carmen Ibáñez Carranza. A juíza brasileira Sylvia Steiner integrou o primeiro corpo de magistrados do Tribunal e atuou em Haia de 2003 a 2016.
Como funciona a Corte?
A atuação do Tribunal Penal Internacional normalmente acontece em último recurso, quando o Judiciário de determinado país falhou em analisar um crime grave e promover a justiça.
No entanto, a atuação da Corte tem como pressuposto respeitar a soberania de cada nação. Sendo assim, o Tribunal de Haia só passa a analisar uma denúncia quando há evidências claras de que os tribunais nacionais falharam, seja por incapacidade, omissão, falta de interesse político ou negligência.
De qualquer forma, casos analisados pela justiça do país de origem também podem chegar ao TPI, embora as chances de a acusação ser admitida sejam pequenas. Quando uma denúncia é aceita pela Corte, o crime não prescreve. Por esse motivo, um processo aberto em Haia vai ter seu julgamento independentemente do tempo necessário.
Além disso, o colegiado só pode julgar cidadãos dos 123 países que aceitaram de maneira voluntária a jurisdição do Tribunal e ratificaram a criação da Corte. O Brasil faz parte dessa lista, já que em setembro de 2002 o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assinou um decreto confirmando a adesão do Brasil.
A Rússia, no entanto, não faz parte dos países que reconhecem as decisões do Tribunal Penal Internacional.
Entidades da sociedade civil, autoridades e outros grupos podem enviar queixas ao TPI. Após a apresentação, as denúncias passam por uma avaliação de admissibilidade. Em seguida, em caso de confirmação de que se trata de um crime grave julgado pela Corte, o processo é encaminhado a um promotor, responsável por decidir pelo arquivamento ou recebimento.
A avaliação do promotor costuma ser minuciosa e visa reunir provas para verificar se os tribunais nacionais foram omissos. Um processo no TPI pode demorar anos para receber uma sentença.
A criação do Tribunal
A origem do TPI está no Estatuto de Roma, elaborado durante uma conferência na capital italiana em 1998. O documento apresentou os termos para a criação de um tribunal internacional permanente e independente que fosse responsável por julgar e prevenir crimes internacionais de grande gravidade.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a diplomacia internacional via a necessidade de criar uma corte internacional que julgasse crimes de grandes proporções contra a humanidade.
Até então, tribunais militares internacionais foram responsáveis pelo julgamento de casos pontuais, como os que julgaram os crimes de guerra cometidos por Alemanha e Japão durante a Segunda Guerra.
Ao término da conferência, 120 países aprovaram a criação do Tribunal Penal Internacional. Apenas sete nações se opuseram ao estatuto: Catar, China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel e Líbia. O órgão passou então a funcionar em 1º de julho de 2002.
A Rússia chegou a ratificar o Estatuto de Roma, mas posteriormente retirou sua assinatura. Sendo assim, o presidente russo, Vladimir Putin, não teria que cumprir uma possível sentença contra ele proferida pelo Tribunal, já que o país não faz parte do TPI.
Sentenças decretadas em Haia
Desde a sua fundação, o TPI analisou 30 casos, que contam com dez condenações e quatro absolvições. Além disso, os juízes do Tribunal já emitiram 35 mandados de prisão e 17 pessoas foram presas no Centro de Detenção de Haia.
Sempre em que há uma sentença, ela deve ser cumprida no país de origem do indivíduo julgado. Algumas das condenações mais notórias da Corte são as de:
- Thomas Lubanga: foi o primeiro condenado desde a criação do Tribunal de Haia. Sua sentença foi proferida em 10 de julho de 2012 após oito anos de processo. Foi condenado a 14 anos de prisão por liderar um movimento rebelde na República Democrática do Congo e recrutar crianças menores de 15 anos para lutar em conflitos armados na região;
- Germain Katanga: condenado a 12 anos de prisão em 2014 por liderar um ataque que resultou no massacre de um povoado da República Democrática do Congo em 2003. Katanga foi acusado de crimes contra a humanidade;
- Bosco Ntaganda: recebeu a pena máxima de 30 anos de prisão por crimes de guerra e contra a humanidade por sua atuação na guerra civil do Congo. O ex-general da República Democrática do Congo recebeu ao todo 18 acusações por crimes como estupros e assassinatos;
- Ahmad al-Faqi al-Mahdi: condenado a nove anos de prisão em 2016, o professor malês foi acusado de crimes de guerra por destruir santuários sagrados, prédios históricos e construções religiosas. Tinha ligações com o grupo fundamentalista islâmico Anser Dine, aliado da Al-Qaeda.
(Publicado por Léo Lopes. Amanda Garcia, Hira Humayun, Olga Voitovych, Mick Krever, Zahid Mahmood e Sugam Pokharel, da CNN, contribuíram para esta reportagem.)